na primeira metade dos anos noventa

Na hora do almoço, por acaso, fomos a um restaurante por quilo que fica em uma casa, sendo o buffet na sala, a cozinha na cozinha mesmo e o quintal e o segundo andar transformados em salão com mesinhas.
 
Ao entrar, reconheci imediatamente um cheiro muito característico.
 
Quando era pequeno, lá por volta dos meus 5, 6 anos, passava muitas horas em casa, só eu e minha irmã. Minha mãe, à época, vendia Yakult, empurrando aqueles carrinhos pelos bairros de São Bernardo. Ficávamos sozinhos apenas alguns dias, não todos, e éramos crianças, brincávamos felizes com as almofadas do sofá e empilhando a enciclopédia em castelos e prédios, espalhando milhares de coisas pela sala. Sendo crianças até que alguma hora da tarde eu (sempre) ficava angustiado porque percebia que estava passando o dia e, sinceramente, muitos dias eu achava que minha mãe nunca ia voltar para casa – ficava desesperado. Chorava e minha irmã não tinha o que fazer para me tirar daquela angústia. Mas minha mãe sempre voltava antes do pôr-do-sol.
 
Nessa época, lá em São Bernardo, na rua Cândido Portinari, onde morávamos, havia um pensionato, que todos chamavam de “Casa da Dona Carlota”. Dona Carlota, como o nome prenuncia, era uma senhora fofinha, acredito que viúva e portuguesa, que tinha um grande sobradão de muitos quartos. Tudo era limpo e organizado – eu tinha certo medo de mexer em algo na casa da Dona Carlota. Lá, na cozinha, acho que foi a primeira vez na minha vida em que mexi com fósforos. Para ajudar a acender um baita fogãozão industrial que ela tinha (e que deve ser um fogão industrial de quatro bocas comum, mas que eu via como algo “diretamente do mundo da lua”). Claro, não devo ter ajudado nada, mas as crianças têm essa inocência de se achar muito importantes quando ajudam em tarefas pela primeira vez.
 
Dona Carlota era uma boa senhora.
 
Não sei quantos eram os dias da semana em que ficávamos sozinhos em casa, nem sei por quanto tempo ficávamos. E isso nem importa pra história que estou contando. Mas me lembrei dela, hoje, ao sentir o cheiro do feijão do restaurantinho. Em alguns desses dias, que também não sei dizer quantos, ela aparecia em casa, com marmitas em tupperwares embrulhadas em panos de prato, e nos passava pela grade da janela da sala.
 
A comida era muito boa e o cheiro era exatamente aquele, o feijão do restaurantinho de hoje, o feijão da Dona Carlota de mais de 20 anos atrás.
 
Pode parecer uma bobagem, mas tenho poucas lembranças vivas da minha infância. Essa acendeu hoje. E, com toda essa distância do tempo e do esquecimento, e sabendo que elas não representam a maioria dos dias, me lembrei de algumas cenas muito felizes, de dias felizes naquele sobrado na rua Cândido Portinari, onde morávamos eu, minha irmã e minha mãe lá na primeira metade dos anos noventa.

Deixe um comentário